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"Menos lama, mais quilos e o título por um triz" - Público

Started by Tribbiani, 17 de May de 2010, 22:23

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Tribbiani

Domingos Paciência
Menos lama, mais quilos e o título por um triz

O argentino Jorge Valdano disse um dia que é preciso saber respeitar os jogadores diferentes. Em tempos, Domingos Paciência foi um deles. Magro fora dos relvados, elegante lá dentro, onde fazia da bola o que queria. Um dia há-de ser treinador do FC Porto e discutir a temporada com o presidente Vítor Baía. Por Luís Octávio Costa

"Já ando há alguns anos no futebol... e já vi de tudo." A 25 de Abril, o Benfica já tinha reservado a rotunda do Marquês, mas pelo menos uma pessoa ainda tentava contrariar as mais elementares leis da probabilidade. Foi por um triz. No dia 9 de Maio, os seguidores de Jorge Jesus festejaram no local combinado. Mas Braga também soube receber o seu herói, Domingos Paciência.

O clube minhoto discutiu o título de campeão nacional até à última. Somou 71 pontos e com esse registo teoricamente teria sido dez vezes campeão nos últimos 12 anos. Domingos, segundo o presidente António Salvador, é "o melhor treinador que já passou por Braga".

Quem conhece Domingos Paciência sabe que ele é um homem de um só clube, de uma só mulher, de uma só paixão, um homem com uma história.

Domingos já não é magricela e enfezadinho, já não usa uma camisola larga às riscas azuis e brancas, já não corre enlameado na direcção dos adeptos com um braço erguido em sinal de golo.

Domingos Paciência tem 41 anos, num bom dia já ultrapassa os 70 quilos e usa casacos formais, camisas brancas e gravatas sóbrias, cruza os braços e espera que os outros façam o que gostava de ser ele a fazer. "Por vezes dá-me vontade de entrar em campo, mas não pode ser. As funções que desempenho são outras e sofre-se muito mais cá fora."

A metamorfose deu-se como uma regra da natureza. "Já não tem necessidade de recorrer ao canal Memória", como dizia ao P2 Fernando Santos, amigo, conselheiro, encarregado de educação do miudinho que nasceu a 2 de Janeiro de 1969 no bairro dos pobres, em frente à refinaria de Leça da Palmeira. Chamemos-lhe bairro do Rodão. "Tentava dizer que morava no bairro do Rodão e não no lugar conhecido por bairro dos pobres porque ficava envergonhado", admitiu recentemente Domingos no programa da RTP Vidas Contadas.

Domingos respira fundo antes de assumir que tem "uma história", socalcos que marcaram a carreira de um dos mais desconcertantes avançados do futebol português. Há uma forma simples para definir esse Domingos: a bola colada no pé, um veloz serpentear e um remate certeiro. A sua outra versão obriga a um exercício de imaginação.

As primeiras chuteiras

Bairro dos pobres, década de setenta. Dizem que Domingos é a estampa do pai, natural de Manaus, na Amazónia, Brasil. Chegou de barco, sem documentos, tornou-se pintor da construção civil. Um dia caiu de uma prancha, fracturou uma perna e foi obrigado a reformar-se prematuramente com sete filhos por criar. O pequeno Domingos acabara de nascer e a mãe, conserveira, segurava as pontas. "Quando abria o frigorífico tinha a porta cheia de ar. É o que eu costumo dizer aos meus filhos", recorda hoje Domingos, casado com Isabel e pai de Gonçalo, de João André e de Vasco.

Obcecado pela bola, agarrava-se ao futebol mais do que aos livros e cresceu com o sonho de vir a ser um jogador famoso como os das cadernetas de cromos do Benfica e do FC Porto. Pontapeou bolas de plástico, perdeu muitos dias no pelado do quartel militar, reprovou, chegou a enganar a mãe de forma a comprar o primeiro par de chuteiras. "Deu-me 600 escudos para comprar umas sapatilhas e eu comprei umas chuteiras de pitões de plástico que se gastaram nos passeios da rua." Fora do seu habitat "duraram um mês".

Habituado a ver as habilidades do pai de Domingos "Zé Brasuca" nos desafios de rua, Fernando Santos detectou potencial "num miúdo de seis anos que escondia a bola debaixo da camisola e atravessava o campo com ela".

"Com a vida que tinha em casa nunca iria conseguir ser um jogador de futebol", conta hoje Santos, que apresentou Domingos e Vítor Baía ao FC Porto. "Falo dos dois porque misturo um bocado as coisas." É inevitável. As feridas nos joelhos, a vida no FC Porto, a escapadela até Espanha, o FC Porto, o futebol. "Se não fosse o futebol, hoje o Vítor, com outra educação, seria um economista ou um advogado; o Domingos teria a profissão de um dos seus irmãos: agente da PSP, carpinteiro, funcionário da câmara..."

O FC Porto é o responsável pela história que se segue. Costa Soares, na altura anfitrião e detector de talentos dos "dragões", olhou para Domingos e para outro miúdo e terá dito: "Juntos, dão um jogador."

Mas mudou de opinião mal viu o que aquele meio jogador podia fazer com uma bola - mesmo sem manual de instruções. O próprio traçou-lhe um plano de crescimento, devidamente acompanhado de perto pelos médicos Domingos Gomes e Fernando Póvoas. O escanzelado ingressou no lar, no centro de estágio portista, mas ainda não entrava com dinheiro em casa. "Os meus pais exigiram que eu largasse o futebol e fosse trabalhar. Pedi-lhes para esperarem mais um ano. Esperaram. Graças a Deus."

Enquanto júnior, recebeu o primeiro ordenado no FC Porto, 7500 escudos que nem para a roupa chegavam. Mal se governava.

Mais tarde, Artur Jorge juntou-o aos seniores. Precisamente no ano em que o FC Porto foi campeão europeu, Domingos passava a ter apartamento e alimentação paga. Ganhava cem contos por mês e aos poucos foi saboreando o seu primeiro carro, um Fiat Uno.

Mas só quando Madjer foi para o Valência e Fernando Gomes entrou na fase descendente é que Tomislav Ivic lançou na primeira equipa o jovem Domingos, ponta-de-lança que, apesar dos despistes e dos solavancos, cativava os adeptos graças a um drible e a uma capacidade de remate decisivos numa zona do campo onde o tempo é sempre um bem escasso. Mas nem tudo eram virtudes. A crítica apontava-lhe a gula, uma tendência egocêntrica no relvado que de certa forma prejudicava a argumentação utilizada um dia por Jorge Valdano. "É preciso respeitar os jogadores diferentes", disse o argentino.

Domingos perdeu algum tempo por cá e mais ainda (dois anos) quando resolveu ir para o Tenerife - em parte porque o FC Porto contratara António Oliveira, treinador que abdicara dele enquanto seleccionador nacional em detrimento de jogadores como Sá Pinto e João Vieira Pinto. As lesões e o estatuto perdido em Espanha obrigaram-no a uma longa travessia no deserto.

Em tempos, o Braga tentara raptá-lo ainda em bruto. Quando voltou cabisbaixo de Tenerife, foi a vez de o Sporting avançar com uma manobra de bastidores travada em plena estrada nacional por Pinto da Costa, que tinha perdido Gomes em circunstâncias semelhantes e não queria repetir a piada. Domingos, que ia assinar pelo Sporting, deu meia volta e terminou a carreira na casa onde, feitas as contas, conquistou sete campeonatos, seis Supertaças e duas Taças de Portugal.

E agora... treinador

Ele e poucos outros sabiam que uma nova etapa começara. Juniores, FC Porto B, União de Leiria, Académica e Sporting de Braga. Domingos Paciência era agora treinador de futebol. Aprumava os gestos e o guarda-roupa, cuidava o discurso e passava a festejar os golos que os outros marcavam. Quem o viu a fintar adversários como uma bicha de rabiar dificilmente imaginaria que o mesmo Domingos pudesse entreter uma plateia (de jogadores, de estudantes, de treinadores até) a falar de marcações à zona, de pressão alta ou de compensações. Quem o conhecia do bairro dos pobres, não imaginaria que um dia ele e os seus pudessem vir a ser vítimas de um assalto digno de uma série policial (a empregada foi obrigada a prender os cães, os filhos foram coagidos a abrir o cofre e os assaltantes usaram na fuga o Mercedes de Domingos).

Domingos só mudou na parte visível a olho nu. "Em miúdo era muito nervoso. Doía-lhe sempre a barriga antes de entrar em campo. "Tomas este comprimido que isso já passa"", conta Fernando Santos. Ainda não está completamente curado desse mal, mas em 2009/2010 o melhor placebo foi uma correria desenfreada atrás do Benfica, o campeão antecipado.

O Benfica foi campeão. Domingos não lhe deu descanso. Fernando Santos sonhara com isto e muito mais. Às vezes, deixa o que está a fazer, olha para os mais miudinhos da Académica de Leça e imagina o futuro dos seus Domingos e Vítor. "O Domingos como treinador do FC Porto e o Vítor a presidente."

O verdadeiro plano só a Domingos Paciência pertence.


Porque um grande homem merece, e Domingos é um homem enorme, um grande obrigado.